quarta-feira, 26 abril 2017
A Polémica Ortográfica
«Obedecer [em determinados momentos] significa que nada valho».
Henry Thoreau
«A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever uma ortografia que repugno […]».
Fernando Pessoa
As palavras de Fernando Pessoa, em epígrafe, têm sido inúmeras vezes invocadas por não-acordistas e nunca é de mais transcrevê-las para relembrar aos políticos, muitos dos quais sem curiosidade e interesse em informar-se sobre a matéria, que a Língua Portuguesa, «um fenómeno de cultura» e «um legado de séculos», não pode estar sujeita a jogadas, nem dependente de aventuras que a desvalorizam, numa leveza de atitude intolerável, o que aconteceu com o processo envolvendo o Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90), praticamente decalcado daquele que foi proposto em 1986, se bem que os seus autores teimem, contrariando os factos, em dizer o contrário.
Lembrar que o acordo de 1986 foi uma iniciativa de José Sarney (então, Presidente da República do Brasil) muito mal acolhida em Portugal, pela ligeireza com que pretendeu varrer, entre outras situações, a acentuação, nomeadamente, nas palavras esdrúxulas, o que deu azo à história hilariante de Miguel Esteves Cardoso sobre o «cágado» e no que se transformava o infeliz, respeitando-se a douta decisão. O ridículo do exemplo e o acentuar da polémica adiaram, por algum tempo, a pretensão, no intuito de acalmar as veementes reacções que, no fundo, persistiram.
Já em 1986, e, por coincidência, em sintonia com a pedagogia da facilidade e o discurso miserabilista que se ia anunciando, de forma gradual, na Escola, os autores da iniciativa, apiedados pelas «pobres criancinhas» e pela sua aprendizagem da Língua Materna, haviam pensado na abolição dos acentos pelo facto «de os alunos nas escolas fugirem dos acentos como o diabo foge da cruz!»* porque «acentos não é com eles»,* segundo palavras do professor Malaca Casteleiro que virá, de novo, em favor das crianças, ao sugerir a «supressão de consoantes não articuladas» que, em sua opinião, se tornam «incompreensíveis para uma criança de 6-7 anos», exigindo-lhe «um enorme esforço de memorização que poderá ser vantajosamente canalizado para outras áreas da aprendizagem da língua».[1] Afiança ainda o mesmo professor, desconhecendo-se o estudo em que se terá baseado, ser «mais simples para uma criança aprender a escrever “Egito”, sem pôr o “p” porque não o articula, e “egípcios” com “p” porque o articula».* No entanto, a nossa experiência mostra-nos que os alunos se surpreendem com o facto, tendo em conta a lógica existente nas famílias de palavras, e questionam precisamente os professores face a esse absurdo do AO 90.
No mesmo sentido da facilidade vêm as palavras do linguista brasileiro, Evanildo Bechara, que coordenou as normas deste processo, no Brasil: «Começamos a aprender a língua pelo ouvido, quando crianças. Depois aprendemos pelos olhos, porque lemos as palavras. […]. Ao abolir o trema, tiramos um peso dos ombros de quem escreve. A falta do trema, longe de ser um prejuízo, é um lucro. Deixamos de escrever o trema, mas podemos pronunciar as palavras da maneira como estamos acostumados a ouvi-las.»[2]. Os dois professores esqueceram, o que é estranho, dado serem linguistas de profissão, que «A função de uma ortografia não é nem facilitar o ensino da escrita nem reflectir a oralidade; a ortografia serve para codificar e garantir a coesão da língua escrita normalizada de uma comunidade nacional.»[3]
A aprovação do AO de 90, sem que este fosse ampla e cientificamente discutido (o vazio de eventos a esse propósito testemunham-no), teve ainda a agravante de em 27 pareceres sobre o AO 90, 25 terem sido contrários, e intoleravelmente ignorados, contra dois que lhe foram favoráveis, um dos quais subscrito pelo autor material do referido acordo, professor Malaca Casteleiro. Esta deplorável situação justifica o caos que alastrou por toda a sociedade portuguesa, com destaque para a Escola e para a Comunicação Social. Seria oportuno transcrever a reacção crítica, em 1991, da Direcção-Geral do Ensino Básico e Secundário: «Há acordos assináveis, sem grandes problemas e há outros que são de não assinar. O acordo recentemente assinado tem pontos que merecem séria contestação e é, frequentemente, uma simples consagração de desacordos.» Na verdade, a confusão e a perturbação foram tais que em pouco tempo se assistiu, e continua a assistir, a uma caótica supressão de consoantes mudas, indo para além do «critério da pronúncia» defendido pelo próprio acordo. Somaram-se, e continuam, os «patos», «compatos», «contatos», «contatei ou contataremos», «fatos», «latentes», «batérias», «tato», numa incontável lista de exemplos que é possível encontrar onde menos se esperaria, nomeadamente no Diário da República, em repartições públicas e em documentação das próprias Escolas e Universidades.
O facto de os autores deste AO 90 invocarem o «critério da pronúncia» é uma situação flagrante da falta de rigor científico, para não dizer ignorância, que norteou todo o trabalho desenvolvido, tendo fomentado uma confusão imensa nas pessoas, nomeadamente nos alunos que já se questionam, ao escrever determinadas palavras, se pronunciam ou não as referidas consoantes, não sendo só esta situação, mas muitas outras (acentuação, hifenização, facultatividades, maiúsculas) a provocar o caos no ensino e na sociedade em geral. Aliás, o próprio professor Evanildo Bechara afirmou, em 2008, que: «O Acordo Ortográfico não tem condições para servir de base a uma proposta normativa, contendo imprecisões, erros e ambiguidades.» [4] Assim, é por demais evidente que os professores, forçados a cumprir o AO 90, desde 2011, sob ameaça de processo disciplinar, têm posto diariamente em causa a sua competência, a sua inteligência e o seu profissionalismo, no ensino do Português, levando os alunos a conviver nas aulas, com «imprecisões, erros e ambiguidades» que, aliás, desde o início foram detectados e denunciados não só pela própria comunidade científica, mas também por escritores, tradutores, revisores, professores, jornalistas, editores. Face ao descalabro continuamente apontado, a resposta sintonizada de políticos e de mentores do AO foi a surdez, a que se associou a comunicação social, com a honrosa excepção do jornal Público.
Malaca Casteleiro ao referir a «pronúncia» como critério que «com a etimologia caracteriza a ortografia da língua portuguesa», não se deu conta da barbaridade científica da sua afirmação, mas acusa os «contristas» (a designação é sua) de «saudosistas do passado»* por criticarem a supressão das consoantes mudas, não articuladas, no respeito pela etimologia, a vertente cultural da ortografia. Afirma mesmo, pretendendo ironizar, que são «pessoas que têm saudades das consoantes mudas»,* consoantes que, na sua douta argumentação, se mantinham pela «teimosia lusitana», quando «a norma brasileira […] há muito [as] suprimiu.» Foi o que iluminada e orgulhosamente escreveu, «por sua iniciativa», na «longa nota explicativa com a justificação das opções tomadas» - Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990)* – texto que, na verdade, o deveria envergonhar. Como o deveria envergonhar, sendo académico, a sua arrogante reacção face a quem ousa contrariá-lo ou a sua fraca imaginação ao lamentar que não haja «antibiótico»* para debelar os opositores ao AO 90. Na verdade, o professor Malaca Casteleiro, em vez de argumentar, limita-se a uma discurso tristemente piegas, lamuriento, chão e de ironia falhada.
Não repararam os mentores desta famigerada aventura, na ligeireza com que decidiram o jogo do tira e põe ou deixa assim-assim que caracterizou a elaboração da «nova ortografia»? No entanto, agora, e porque não conseguiram encontrar o tal «antibiótico» para desestabilizar e debelar a resistência e a desobediência dos não-
-acordistas, mostram-se profundamente chocados com a atitude e a proposta louvável da Academia das Ciências, porque, e de acordo com as palavras do professor Malaca Casteleiro, «não podemos andar a mudar a ortografia assim de forma ligeira»* (certamente uma auto-crítica tardia) e porque «aquilo» «não tem pés nem cabeça», é «gente» «à procura de protagonismo, mediatismo, e porque é contra», «que não percebe nada de ortografia mas que está agarrada ao passado», mimos que espelham a qualidade de um professor universitário.
Na sequência da intervenção da Academia das Ciências, regressou novamente a compaixão do professor Malaca Casteleiro pelos alunos, quando na altura da implementação obrigatória do AO, na Escola, não se preocupou com o facto de os pobres dos alunos, e dos portugueses, serem forçados a desaprender, por decreto, o que haviam aprendido anteriormente, substituindo essa aprendizagem por «imprecisões, erros e ambiguidades». Tudo lhe pareceu até muito simples porque o novo acordo respeitava bastante a pronúncia e por isso escrever tornar-se-ia mais fácil, parafraseando o que disse. Neste momento, por isso, para o professor Malaca Casteleiro, «voltar atrás seria um atentado ao bom senso porque há milhares de crianças e jovens que já aprenderam de acordo com a nova ortografia, e agora tinham de voltar outra vez?»,* a que respondemos que, sensatamente, assim deverá ser pelo respeito que o ensino da Língua Portuguesa e os alunos nos merecem. Séneca diria que «errar é próprio do homem, persistir no erro é próprio dos loucos».
O futuro da Língua Portuguesa nunca poderá estar neste famigerado acordo ortográfico, em que a língua foi vilmente negociada e desprezada, enquanto «obra de cultura», mas antes na qualidade do seu ensino para que possa ser bem falada e bem escrita. Imperioso é chamar igualmente a atenção dos políticos para a necessidade urgente de reabrir leitorados, há muito fechados, de ensinar a Língua Portuguesa aos filhos dos emigrantes, de discursar em português quando se deslocam ao estrangeiro, de acabar com a aberração que é o uso da língua inglesa em algumas universidades portuguesas.
Nota: * Em entrevista ao jornal Observador de 13.02.2017
Maria do Carmo Vieira
Lisboa, 25 de Março de 2017
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