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AO/90: «um monumento de incompetência e de ignorância»
domingo, 31 janeiro 2016

AO/90: «um monumento de incompetência e de ignorância»

AO/90: «um monumento de incompetência e de ignorância»*

O “Acordo Ortográfico” de 1990 (AO90) não é, em rigor, um “Acordo”, uma vez que, internamente, não tem consistência ao nível da “unificação” da ortografia, e, externamente, Angola e Moçambique não o ratificaram; não é “novo” (antes remonta aos Projectos do AO86, que, por seu turno, remonta ao Projecto de AO75, começado a ser preparado em 1971); e controversamente é “ortográfico”, devido às facultatividades que consagra e aos pressupostos metodológicos desactualizados em que assenta (por exemplo, no que diz respeito à alegada aproximação da escrita à fala, a pretensa primazia da oralidade, quando, ao invés, a ortografia não é um conjunto de representações de sons; as “pronúncias” contingentes (nem sequer, em rigor, correspondentes à “fonética”); as discriminatórias “pronúncias cultas da língua”).

O “Acordo Ortográfico” de 1990 é, de todas, a pior Reforma em termos técnicos, feita praticamente sem estudos, cheia de falácias, ou seja, de muitos argumentos não científicos e não provados; não só é extremamente imperfeita, mas também nefasta.

O argumento da aproximação da escrita à fala é um argumento ignorante. Várias consoantes “mudas”, como o “h” inicial, não foram eliminadas, em virtude do uso.

A ortografia não representa, nem pode representar, o nível da prolação dos enunciados.

1. As facultatividades, oriundas do “Formulário Ortográfico” da Academia Brasileira de Letras de 1943 (repristinado em 1955), com o qual a alfabetização do Brasil foi feita, são o aspecto mais grave do AO90.
A introdução das facultatividades gráficas generalizadas e irrestritas [cfr., por exemplo, Base IV, n.º 1, alínea c)] tem efeitos muito perniciosos, v. g., pulverizar a ortografia em multigrafias entre os vários países lusógrafos e restantes comunidades; em multigrafias regionais; e em multigrafias particulares.
As facultatividades instituídas pelo "Acordo Ortográfico" de 1990 devem ser consideradas irrestritas geograficamente, segundo a letra e o espírito do AO90.
As facultatividades implicam a destruição do conceito normativo de ortografia (cfr. Base I da Convenção Ortográfica de 1945).

2. Os lemas (isto é, entradas de Dicionário) inventados, inexistentes em ambas as variantes, como “conce[P]ção” e “rece[P]ção”, figuram no Tratado do AO901(!). Ora, isso desfigura o núcleo identitário da Língua Portuguesa (no seu todo).
O AO90 é uma tentativa falhada de importação de culturas, senão mesmo “um monumento de incompetência e ignorância2, como refere ANTÓNIO EMILIANO.
Ora, para piorar a pretensa “aplicação” do AO90, o ILTEC tem uma interpretação autêntica do AO90 que, para além de inconstitucional (art. 112.º, n.º 5, 2.º parte, da CRP), é calamitosa:

i) Contam-se em centenas os lemas inventados(ao que acresce, nos verbos, 68 formas flexionadas; e, nas restantes palavras, as formas, amiúde, no género feminino e no plural; o que envolve um impacto extremamente amplo da “aplicação” do AO90);

ii) O conversor Lince e o “Vocabulário Ortográfico do Português” não deixam, amiúde, escolher entre as facultatividades permitidas pelo AO90.

3. Em relação a estas normas mais aberrantes, em nosso entender, existe um dever de não atentar contra o património cultural imaterial constituído pela Língua Portuguesa, e, por conseguinte, de desobediência. Para o efeito, há que ter em conta o dever fundamental de preservar, defender e valorizar o património cultural (artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte, da Constituição), de que a língua portuguesa faz parte.
Em suma, existe um dever de todos os particulares desobedecerem às normas mais aberrantes do AO90, desfiguradoras do núcleo identitário das normas ortográficas costumeiras de Língua Portuguesa.

4. Antes de tudo, segundo o Embaixador CARLOS FERNANDES, o AO90 não está em vigor “de iure”; ii) a nosso ver, o AO90 é inconstitucional a vários títulos 4; iii) já de si, o AO90 é um documento de péssima qualidade linguística.
Mas há pior: o Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), através do conversor Lince e “Vocabulário Ortográfico do Português”, e outros Linguistas em várias entidades públicas (por exemplo, na Imprensa Nacional – Casa da Moeda, editora do “Diário da República”) têm “executado” o AO90, com ampla redução das facultatividades permitidas.
Ora, esta é uma violação ostensiva quer da letra das inúmeras Bases do Anexo I, quer do espírito do Tratado do AO90, que prevêem facultatividades irrestritas. Os instrumentos oficiais e privados têm suprimido, “a torto e a direito”, as consoantes “c” e “p”; o que, ironia das ironias, faz com que os laços com os Países de Língua Oficial Portuguesa, incluindo o Brasil, sejam deslaçados, ficando Portugal com ortografia diferente da ortografia do Brasil!
Por outras palavras, a (alegada) “implementação” do AO90 desunifica a grafia “acordizada” de Portugal relativamente à maioritariamente grafada no Brasil (v. g., “perspetiva”, por “perspectiva”; “respetivo” por “respectivo”, “aspeto” por “aspecto”).

5. As “aplicações” do AO90, com as entorses aludidas, afastam o Português europeu das principais línguas românicas — como o Francês, em que a escrita está muito dissociada da via oral; o Castelhano, o Italiano, o Romeno, o Catalão — e germânicas, designadamente o Inglês, a língua de comunicação global por excelência actualmente, o que se estende ao domínio científico – e o Alemão5.
Não nos parece haver qualquer sentido lógico em visionar um filme estrangeiro, em que a tradução não contenha essas consoantes (alegadamente “mudas”).

7. Para quem pense, em erro, que o AO90 ajudaria à difusão e à projecção da língua portuguesa, o AO90 não só não se afigura necessário, mas por certo não é o caminho, devido ao facto de regular apenas uma parte da escrituralidade.
Por outro lado, AO90 tem a enorme desvantagem de impedir a correcta apreensão de outras línguas estrangeiras (competência cada vez mais valorizada nos dias de hoje, num mundo globalizado).

8. Após a ratificação do 2.º Protocolo Modificativo ao AO90, o XVIII Governo decidiu acelerar a implementação do AO90 em Portugal. Para esse efeito, o Governo-administrador emitiu a Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de Janeiro de 2011 (= RCM).
Esta RCM antecipou o final do “prazo de transição” em 5 anos para o sistema de ensino (público, particular e cooperativo) (n.º 3); e em 4 anos, 9 meses e 22 dias para a Administração Pública (directa, indirecta e autónoma) (n.º 1), bem como para as publicações no “Diário da República” (n.º 2).
A “aplicação” do regulamento administrativo da RCM, por parte do XIX Governo Constitucional, veio a produzir o efeito de gerar o caos gráfico em Portugal e uma alteração significativa da estabilidade ortográfica, que a Ortografia costumeira assegurava.
Porém, o certo é que, em termos jurídicos, essa RCM padece de inconstitucionalidades grosseiras, detectáveis por qualquer aluno de Direito.
Para o efeito, a RCM foi objecto de impugnação, através de uma acção judicial popular junto do Supremo Tribunal Administrativo, em 15-7-2014. 
Infelizmente, a Justiça Administrativa tem tardado...

9. Em nossa opinião, o AO90 não irá vingar, pois encontra-se mal feito na sua génese, gerando inúmeros erros de “aplicação” (por se basear em pressupostos desactualizados na Linguística e, por conseguinte, estarem errados, à luz da Ciência, pelo menos desde os anos setenta; v. g., a alegada primazia da oralidade sobre a escrituralidade), equívocos, “erros de acordês”. A única solução digna de um Estado de Direito é que seja ordenado o retrocesso na “aplicação” do AO90, fazendo Portugal sair deste parêntesis mal-afamado, para bem dos Portugueses e das gerações vindouras. Mais cedo ou mais tarde, é isso que terá de suceder.

Ivo Miguel Barroso
Jurista e docente universitário

*O título é uma paráfrase de ANTÓNIO EMILIANO, in Apologia do desacordo ortográfico, Verbo/Babel, Lisboa, 2010, pp. 81, 172, 34.
1 Base IV, n.º 1, al. c), do Anexo I do AO90; Anexo II, “Nota Explicativa”, 4.1.1.
2 ANTÓNIO EMILIANO, Apologia do desacordo ortográfico, pp. 81, 172, 34, cfr. IDEM, O fim da ortografia. Comentário razoado dos fundamentos técnicos do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), Guimarães Editores, Lisboa, 2008, p. 102.
3 “contraceção”, por “contracepção”; “anticoncetivo”, por “anticonceptivo”; “receção”, por “recepção”; “perceção”, por “percepção”; “confeção”, por “confecção”.
4 Para a enunciação das inconstitucionalidades totais e parciais do AO90, v. o resumo em IVO MIGUEL BARROSO / FRANCISCO RODRIGUES ROCHA, Guia jurídico contra o “Acordo Ortográfico” de 1990. (…), a partir de http://www.publico.pt/ficheiros/detalhe/requerimento-ao-ministerio-publico-contra-o-acordo-ortografico-20141120-233159, pp. 99-106.
5 V., por todos, o estudo exaustivo de Filologia Comparada, da autoria FERNANDO PAULO BAPTISTA, Por amor à Língua Portuguesa, Piaget, Lisboa, 2014.

Comentários (2)

  • Rosa Maria Brandão

    Rosa Maria Brandão

    31 janeiro 2016 às 15:34 |
    Muito bem, Doutor. Adorava que os apoiantes do "acordo" tivessem a inteligência suficiente para perceber que destruir e evoluir são coisas completamente diferentes. O grande problema é que os cifrões ($$$$$$$$$$) e a necessidade de promoção embotam a inteligência.
  • Vitor Madeira

    Vitor Madeira

    25 maio 2016 às 01:13 |
    Desde 2012 que escrevo segundo a norma de 1990, e mas nunca senti qualquer ameaça que fosse à minha identidade cultural ou patriótica em relação à língua ou ao país que me viu nascer.

    O acordo tem defeitos? Sim, tem muitos. Tal como *todos* os empreendimentos e iniciativas de todos os seres humanos à face da terra. Nada do que façamos, será, alguma vez, perfeito.

    Assim, o caminho não é para trás. É para diante.
    Aperfeiçoemos o que há para aperfeiçoar e melhoremos o que há para melhorar.

    A alteração da ortografia da língua portuguesa não acaba com a língua. Antes pelo contrário, trará novos desafios quer para as gerações atuais, quer para as vindouras.

    Temos uma língua viva, certamente. Viva a língua portuguesa.

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