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Ana Salgado
terça-feira, 18 outubro 2016

Os 7 pilares da ortografia

«A base para a regularização da ortografia portuguesa tem de ser a história da língua no tempo e no espaço[i]»

(A. Gonçalves Viana, 1904)

 

A língua portuguesa carece de uma ortografia adequada – uma ortografia simples, mas que respeite, simultaneamente, a sua própria índole. Sinal da complexidade do português é a necessidade constante de recorrer a vocabulários ortográficos, a dicionários, a prontuários, para evitar erros de escrita. Qualquer tentativa de simplificação ortográfica nunca conseguirá reduzir a complexidade, as finas subtilezas e audaciosas particularidades do idioma português. E ainda bem. Proceder a uma simplificação drástica seria descaracterizar a nossa língua portuguesa no que ela tem de mais belo: a sua riqueza e diversidade.

A ortografia portuguesa enfrenta tempos conturbados, contudo talvez tenha sido sempre assim. Quando não há notícia de tsunâmis, furacões, graus de licenciados anulados, políticos corruptos apanhados em flagrante, árbitros incompetentes, etc., sempre volta a crítica ao já vetusto, mas sempre ‘novo’, Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990). Mais leve, e mesmo com referendos, está a ser aplicado e está em vigor.

A resistência à mudança não é de agora. O tema da ortografia da língua portuguesa foi sempre um assunto controverso e, de certa forma, apaixonado. A língua é algo que nos é intrínseco, faz parte do nosso património, tão nosso que todos opinam sobre a mesma e tecem todo o tipo de comentários. Todas as reformas ortográficas encontraram algum tipo de resistência. Mas insisto, nunca é demasiado tarde: devemos prosseguir na «demanda» de um sistema ortográfico que bem se adeque a todos os territórios em que se fala e escreve em português. Este Acordo deve ser aperfeiçoado, melhorado.

Eis os pilares em que uma boa e adequada ortografia se deveria estruturar:

1) Pilar da simplificação.

Nos tempos modernos, desde fins do século XIX, uma ortografia simplificada tem sido a linha seguida, sempre com ânimo unitário, isto é, de modo que o padrão servisse para todo o âmbito geográfico e social da língua. Só em 1911 o português foi objeto de uma normalização e simplificação. Gonçalves Viana, grande impulsionador desta reforma, considerava que uma reforma científica da ortografia teria, necessariamente, de conjugar a representação fónica com a história da língua, mas, e em prol da dita simplificação, haveria que levar a cabo determinadas concessões etimológicas. Assim o fez. Na mesma linha, situa-se o trabalho magistral de Rebelo Gonçalves[ii], que já no Vocabulário com cunho académico, de 1940, apresenta determinados aditamentos às regras anteriores, labor que culmina com a assinatura da Convenção de 1945. Em 1986 surge um novo projeto, o qual, por ser demasiado drástico e simplificador, não foi bem acolhido. Retrocede-se em alguns pontos e surge o Acordo de 1990 que visa também a simplificação.

Consideramos que a simplificação é imprescindível para qualquer sistema ortográfico, pelo que admitimos (dado que o Acordo se encontra em vigor desde 2009 e, sobretudo, porque tem sido aplicado no sistema educativo desde 2011) grafias simplificadas como direto, exato, objeto, ação, coletivo, etc., apesar de reconhecer que nos dois últimos vocábulos as consoantes mudas pudessem vir, de futuro, a influenciar a forma como estes vocábulos são pronunciados.

Um ponto deste Acordo encarado como problemático é o facto de um mesmo vocábulo apresentar mais de uma grafia correta (grafias duplas) e a proliferação da noção da facultatividade na ortografia. Não se trata, afinal, de simplificar. A facultatividade não é uma novidade na língua, mas este princípio vai contra o próprio conceito de unificação da ortografia. As grafias duplas são a representação gráfica de pronúncias diferentes, quer entre diferentes países, quer dentro do próprio território nacional. Não há dúvidas de que um português diz amnistia e tónico e um brasileiro anistia e tônico e que qualquer um dos dois irá grafar estas palavras de acordo com a sua pronúncia. Quando na Nota Explicativa se lê: «Os dicionários da língua portuguesa, que passarão a registar as duas formas em todos os casos de dupla grafia, esclarecerão, tanto quanto possível, sobre o alcance geográfico e social desta oscilação de pronúncia», deixa-se a resolução do problema para outros decisores, nomeadamente os lexicógrafos de Portugal e do Brasil. Ora, no Plano de Ação de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa (2010) lê-se o seguinte: «Nos pontos em que o Acordo admite grafias facultativas, é recomendável que a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição ortográfica vigente em cada Estado Membro, a qual deve ser reconhecida e considerada válida em todos os contextos de utilização da língua, em particular nos sistemas educativos.» Esta declaração do Conselho de Ministros da CPLP vem confirmar a existência de várias grafias nos diferentes países e atribuir essa responsabilidade às entidades oficiais. O que permite concluir que, além de um vocabulário que tenha as palavras consideradas comuns na lusofonia, cada país terá legitimamente o seu vocabulário próprio.

Em prol da simplificação do sistema ortográfico, referimos também a necessidade de se evitarem ambiguidades completamente desnecessárias e que apenas poderão ser descodificadas pelo contexto. A conhecida supressão de consoantes ‘mudas’ gera, em determinados casos, homonímias que deverão ser evitadas em qualquer sistema ortográfico que se pretenda simplificado e objetivo. É o caso em que se encontram os pares: aceção (sentido) vs. acessão (consentimento); corrector (quem corrige) vs. corretor (agente); espectador (aquele que assiste) vs. espetador (o que espeta); óptica (visão) vs. ótica (audição); recepção (recebimento) vs. recessão (retrocesso). Pelo risco de homonímia insanável, sugere-se a manutenção da consoante etimológica, permitindo a distinção das formas gráficas. Propõe-se, em primeiro lugar, a reposição da consoante etimológica nos vocábulos em questão e em palavras da mesma família e, em segundo lugar, uma nova redação do texto legal que recomende explicitamente esta manutenção, podendo ser considerada uma das exceções à supressão geral das consoantes ditas ‘mudas’.

Afinal, o próprio texto do Acordo Ortográfico de 1990, em capítulo diferente, o da eliminação do acento diferencial em paroxítonas que possuem uma homógrafa sem acentuação própria, mantém a distinção entre pôr (verbo) e por (preposição), um par semelhante ao anterior, e também entre pôde (pretérito perfeito) e pode (presente), mas não distingue pára (verbo) e para (preposição). Oportunamente, também nos pronunciaremos sobre o aumento de situações de homografia geradas com esta nova regra, e que interferem com a velocidade do processamento da informação no ato de leitura.

2) Pilar fonético.

O critério norteador das novas normas ortográficas na demanda de um padrão ortográfico único é designado pelos redatores do Acordo Ortográfico como «critério fonético (ou da pronúncia)» na Nota Explicativa, 3. Este princípio fonético, muitas vezes criticado como um critério de fraco valor científico, pretende simplificar a ortografia e reduzir o número de divergências entre as práticas ortográficas portuguesa e brasileira.

A escrita não tem uma função instrumental de mera representação da fala. Trata-se de uma aproximação, a possível. A primazia que é dada ao princípio fonético deve ser, por isso, ponderada. Sempre que a consoante é pronunciada, a mesma é conservada, como em contacto, corrupção, intelectual, rapto. Atendendo ao princípio fonético, a consoante, quando não pronunciada, é eliminada em prol de uma maior simplificação. No entanto, a criação de palavras novas com a aplicação da nova ortografia deve ser alvo de uma nova reflexão, como é o caso das grafias aceção, receção, etc. Se o princípio é unificador, na prática não deveriam existir casos que gerassem grafias diferentes entre as duas normas e, além do mais, que nem sequer existiam no sistema ortográfico português. Refira-se, uma vez mais, os riscos de ambiguidade que muitos destes casos apresentam.

3) Pilar etimológico.

Uma ortografia rigorosamente etimológica seria hoje inadmissível; no entanto, há casos em que devemos apelar ao bom senso, e regressar às origens, para evitar determinadas incoerências, sobretudo, no plano paradigmático, em formas derivadas como, por exemplo, antisséptico, asséptico ou séptico. Lembremo-nos, inclusivamente, da decisão tomada para o h em posição inicial (cf. Base II). Apesar de se tratar de uma consoante invariavelmente não pronunciada em português, o h inicial conserva-se por «força da etimologia» ou «em virtude de adopção convencional». Há, claramente, uma opção conservadora. Contrariamente ao critério fonético, a etimologia une na escrita os falantes. Esta preocupação estava bem explícita no 3.º da Base VI da Norma de 1945: «Conservam-se [as consoantes] ... nos casos em que  ... ocorrem em seu favor outras razões como a tradição ortográfica ...».

4) Pilar da analogia.

Um olhar atento e descritivo do léxico português permitirá fazer comparações para evitar determinadas incoerências que, por analogia com palavras da mesma família, são casos únicos, como em Egipto (não Egito) vs. egípcio, egiptologia, egiptólogo, etc, interrupção e interruptor (não interrutor), insurreto e ressureto, ruptura e rotura, apesar de as grafias divergirem em algumas obras de referência.

5) Pilar da tradição ortográfica ou consagração pelo uso.

Além da manutenção de consoantes não articuladas, noutros casos é também importante assegurar e respeitar a tradição gráfica do português e preservar certos usos já consagrados, sempre que essa herança seja vantajosa e benéfica, por exemplo por clareza gráfica, como é o caso do emprego do hífen em compostos, de sentido opaco, que não são, de facto, locuções, estas de sentido literal. Citem-se casos como: folha-de-flandres, pé-de-meia, tinta-da-china, etc.; ou o caso de compostos que são formados com formas reduzidas de adjetivos e que entram na composição de gentílicos, como afro-americano, indo-português, etc.

6) Pilar da exaustividade.

Uma condição necessária para a elaboração de um bom e rigoroso tratado de ortografia e que bem sirva a escrita portuguesa deve passar pela disponibilização de listas exaustivas que sejam devidamente analisadas e tratadas de forma pormenorizada e mais completa possível por uma equipa de especialistas, que reúna, definitivamente, lexicógrafos, linguistas, tradutores, etc., ou seja, todos os profissionais da língua.

7) Pilar do bom senso.

É conveniente e vantajoso definir uma política linguística que seja um instrumento de conservação do vasto património que representa a língua portuguesa, reconhecendo a pluralidade e diversidade do nosso idioma, em que o bom senso impere e cada decisão seja devidamente ponderada e haja uma forte coerência no conjunto da aplicação de novas normas. O que no nosso país não devemos nunca ignorar também é que a variedade portuguesa da língua tem a peculiaridade de fechamento das vogais átonas e que frequentemente a etimologia nos era muito útil. Uma lição deve estar sempre presente: cada caso é um caso.

Lisboa, 18 de outubro de 2016
Ana Salgado

 

 



[i] VIANA, A.R.G. Ortografia Nacional. Simplificação e uniformização das ortografias portuguesas. Lisboa: Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso, 1904.

[ii] Cite-se a obra GONÇALVES, Rebelo, Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, Coimbra: Atlântida, Livraria Editora, 1947.

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