sábado, 17 junho 2017
Tolerância e Norma
Por D'Silvas Filho
1. Norma
O lema de Ciberdúvidas, desde e sua fundação, tem sido:
«A língua é como um rio, sem margens desaparece.»
Efetivamente as normas são fundamentais na vida em sociedade, para que as comunidades se entendam bem. São, inclusivamente, muitas vezes indispensáveis para proteger bens e pessoas, de que um exemplo frisante é o Código da Estrada. Há instituições nacionais especializadas na normalização, e até internacionais, como a ISO - International Organization for Standardization.
Ora a língua, o elemento de comunicação básico na sociedade, não poderia também deixar de ser normalizada. Temos, assim, as regras gramaticais, que incluem as ortográficas como normativas. Sem estas regras, os escritores escreveriam como lhes apetecesse e poderiam entrar em solilóquios só por eles entendidos, ou em misturas de letras a seu talante, como acontecia na língua portuguesa antes de 1911.
Assim, por exemplo, porque se diz ele |há de|, não é legítimo dizer-se eles |hadem| pois não existe o verbo “hader”.
Na língua portuguesa, noutro exemplo, agora ortográfico, e sintetizando um sentido de “ajuste, contrato, convenção”, escolheu-se, entre as 26 letras do alfabeto latino, as cinco que formam o conjunto pacto, com o grafema c a ter o som [k] nesse agrupamento (a letra c pode estar noutros fonemas: [s] e [∫] no grafema ch). Então, lá porque aparecesse a ideia de ostracizar a letra c nos termos comuns, como se fez com o y, não seria aceitável que se passasse a escrever pato, porque a palavra ficava com um sentido completamente diferente. Quebrava-se a convenção, ao menos aproximada, entre grafia e fonia para o sentido particular desejado na palavra.
Ainda noutro exemplo ortográfico, o conjunto dos grafemas pode dar um sentido completamente diferente às palavras, mesmo quando os significantes fonéticos possam ser eventualmente idênticos, como acontece em: intersectar (cruzar) e interceptar (interromper). Neste, caso, dado o som [s] também habitual do c, o que caracteriza mais as palavras no seu sentido são as diferenças gráficas nas consoantes c e p das sequências internas ct e cp. Numa ideia abstrusa de se suprimirem todas as consoantes não articuladas, alguém em presença da palavra intersetar poderá pensar que vai ficar num cruzamento e, afinal, ficar num beco (sem saída...). Nessa supressão exagerada, quebra-se uma das regras gramaticais: a linguagem deve ter qualidade na clareza da sua mensagem.
Repare-se na seguinte diferença: o VOLP da Academia Brasileira de Letras regista, só com a consoante: intersectar e interceptar, enquanto o vocabulário imposto pela Resolução do C. M., como vocabulário nacional para o AO90, estabelece, para Portugal, justamente a dupla reprovável intersetar e intercetar, indicando que intersectar é termo brasileiro e nem aceitando mesmo interceptar (indica: palavra não encontrada)... Esta simplificação afinal foi perniciosa, na perda de qualidade que as consoantes mudas davam às palavras.
Conclusão: “A língua, como o rio, desagrega-se quando não se respeitam as margens, ou estas se simplificam em excesso.”
2. Tolerância na língua
O autor invoca sempre, no início das várias edições do seu Prontuário, os propósitos de Vasco Botelho de Amaral, o fundador da Sociedade da Língua Portuguesa:
«Eu não mando na língua. (Nem ninguém manda.) A minha posição só me agrada seja a da tolerância.»
De facto, ninguém se pode considerar dono da língua. Os verdadeiros donos são os falantes. Por exemplo, não se pode proibir que as mensagens SMS sejam escritas sem acentos gráficos. A verdade é que isso não impede que os falantes se entendam perfeitamente na comunicação.
Ora, uma reforma ortográfica tem, sobretudo, como objetivo sistematizar e adaptar a escrita oficial ao uso que os falantes estão a dar já à sua língua. Foi o que aconteceu na Reforma de 1911, em muitas simplificações, como letras duplas desnecessárias, etc.; e na Norma de 1945, na supressão de algumas, poucas, consoantes das sequências internas. Sendo esta Norma já satisfatória do ponto de vista técnico, também só poucas simplificações seriam oportunas numa nova norma.
Lembramos o que já referimos em anteriores artigos:
Talvez fossem só necessárias as alterações indispensáveis para que o Brasil repensasse a denúncia do Acordo de 1945 depois de o ter assinado.
De facto, como já dissemos, o objetivo de se ter uma só língua portuguesa, e não uma de Portugal e outra do Brasil, como muitos brasileiros defendiam, fracassou em 1945, devido à nossa prepotência em exigir condições que o Brasil não podia aceitar. Bastaria depois, por exemplo, conciliar o desencontro, nas consoantes mudas, com a aceitação por Portugal da sua supressão nos casos em que não tivessem valor diacrítico na sequência (vogal anterior átona ou tónica) e no estabelecimento de duplas grafias nos casos em que esse valor fosse útil na variedade europeia da língua.
Quando França reformulou a sua ortografia em 1990, estabeleceu que quem quisesse poderia continuar a escrever na norma anterior. A Reforma de 1911 consentia que poderiam dispensar-se, nalguns casos e minúcias, o rigor e a sistematização recomendadas. Ou seja, o critério de indicar novas regras ortográficas deve estar sujeito ao superior de tolerância, sem violentar muito o uso dos falantes; e uma norma ortográfica nova deve ser uma mera recomendação, sem grandes imposições taxativas num curto prazo, até que os falantes a aceitem e entre naturalmente nos usos linguísticos.
Num país onde se cultiva a bandeira da Liberdade, a ortografia não pode ser uma obrigação completamente intolerante.
De facto, tem havido intolerância nos casos em que se deseja só a nova ortografia, esta ainda por cima abusiva, ...e, “quando as margens são excessivamente estreitas, o rio transborda, desagrega-se em confusão também...”
Mas, inversamente, continua a haver intolerância quando tudo se recusa da nova ortografia, mesmo aquilo que é manifestamente útil, como se verifica nalgumas recomendações do AO90.
Extremistas que, de um lado e do outro, pretendem mandar na língua...
«A minha posição só me agrada seja a da tolerância.» V. B. A.
3. A ação da Academia das Ciências de Lisboa (ACL) na língua
3.1. O período áureo
Nas Considerações Finais dos Preliminares do valioso e amplo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa editado pela ACL em 1940, são citados muitos eruditos que colaboraram na obra, alguns nomes que se projetam na memória linguística, como Cândido de Figueiredo, Francisco Torrinha, Antenor Nascentes, David Lopes; e vários académicos, não só da Classe de Letras, mas também da classe de Ciências. Na Norma de 1945, como já sublinhámos em anterior artigo, ressalta o nome do relator Francisco Rebelo Gonçalves, que nos legou o seu monumental Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, editado em 1947, e o completo Vocabulário da Língua Portuguesa, editado em 1966, que se diz serem autênticas bíblias na ortografia do português europeu até ao surto controverso da aplicação do AO90.
A ACL, órgão consultivo do Governo português em matéria linguística, tem um passado na língua que honra o país.
3.2. O período menos esclarecido
Foi descabida a unificação ortográfica pretendida total entre Portugal e Brasil no Projeto de 1986. Dada a diferença já existente entre as duas práticas ortográficas, era de prever que tal unificação só se poderia realizar com mudanças muito profundas, que iriam certamente escandalizar os falantes. Em anteriores artigos (Acordos ortográficos imperfeitos não são sagrados), o autor foi exaustivo nos problemas deste Projeto. Também disse que, se nessa altura ainda pontificassem na ACL académicos do nível de Rebelo Gonçalves, esse projeto nunca teria avançado.
De facto, bastaria que se tivessem limitado a simplesmente um vocabulário que fosse considerado como um conjunto de termos aceites como legais numa dita “comum língua” portuguesa, com algumas grafias “facultativas”, seguindo recomendações gerais acordadas num texto de orientação. Lembremo-nos de que já tivemos quase esse vocabulário, pois o acima citado Vocabulário da ACL, de 1940, serviu de orientação para o posterior vocabulário brasileiro. A sua página inicial fazia uma dedicatória da obra «às Nações Portuguesa e Brasileira».
Mas, não obstante a abertura às “facultatividades”, o assinado Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) continuou na senda desnecessária das grandes alterações do Projeto de 1986. Dizia-se menos forte, mas até foi mais radical nas consoantes não articuladas. Ao menos, o AO90 estabelecia como condição base para entrar em vigor a constituição desse tal vocabulário da língua dita “comum” (VOC).
Ora, aconteceu que tal vocabulário não chegou a ser realizado antes de se ter posto o Acordo de 1990 em vigor, e continua hoje insatisfatório. Assim, a verdade é que não temos ainda a língua comum almejada, cujo símbolo é esse VOC, acrescendo que, dos oito países signatários, só quatro referendaram o Acordo nesta data. E quem defende que o AO90 é intocável, deve meditar também nestes factos.
Por outro lado, uma coisa é um vocabulário de termos todos legais para que se possa dizer que fazem parte de uma “comum língua”, outra os vocabulários nacionais dos oito países que assinaram o Acordo de 1990, vocabulários que não são obrigatoriamente coincidentes nas suas peculiaridades.
Na Declaração do Conselho de Ministros da CPLP, no Plano de Ação de Brasília para a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa, ficou bem claro: «Nos pontos em que o Acordo admite grafias facultativas, é recomendável que a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição ortográfica vigente em cada Estado Membro, a qual deve ser reconhecida e considerada válida em todos contextos de utilização da língua, em particular nos sistemas educativos.» Em resumo, Portugal é soberano nas suas escolhas e, naturalmente, logo à partida, nas propostas a fazer para esse Vocabulário Comum que contenha as tais grafias “facultativas”.
Conclui-se, assim, que uma comissão estabelecida para elaborar um vocabulário da “comum língua” não tem autoridade para impor vocabulários em cada um dos países, mas somente o de coligir vocábulos e, quanto for possível, unificar discrepâncias (o que nem isso fez ainda bem).
Nesta precipitação imponderada de se pôr politicamente o AO90 em vigor, e contrariando o princípio base da prudência nas alterações das regras na língua, o Governo do primeiro-ministro José Sócrates impôs autocraticamente, no ensino e na Administração do Estado, uma aplicação do AO90 (Resolução do C.M. 8/2011) que excede, em simplificacionismo, as determinações do próprio texto; sendo, portanto, uma imposição de prepotente dono da língua, e, assim, acabando, afinal, por dividir os falantes entre extremos de intolerância.
Ora, quando se esperava que a ACL viesse finalmente a terreiro com um Vocabulário que corrigisse os excessos de um critério fonético não exigido tão extremado pela Nota explicativa do AO90 (e contrariamente ao parecer expresso pelo autor, que já apontava erros à aplicação que estava a ser feita do novo Acordo Ortográfico), a ACL publicou um vocabulário desprestigiante no comparativamente muito reduzido número de entradas e ainda “mais fonético” do que os dois de consulta para o AO90 (VOP e Infopédia).
Se a ACL, aceitando o Projeto de 1986 e depois consentindo na aplicação abusiva do AO90, já perdera no autor o respeito histórico que sempre tinha merecido, continuava, neste vocabulário para o AO90, a alinhar nesse simplificacionismo excessivo, em desacordo com o seu passado, e, estranhamente, como entidade consultora para a língua, ignorava, de todo, as suas virtualidades gráficas e peculiaridades prosódicas ...no próprio país em que nela pontificava... O vocabulário da ACL para o AO90, foi, para o autor, embora um trabalho respeitável como tal, uma obra que infelizmente nunca lhe serviu de consulta.
3.3. De volta às origens
Até que um novo interesse do autor pela ação da ACL na língua surgiu num colóquio organizado pela Academia sob o tema do bom senso e depois numas trocas de impressões com alguns dos seus académicos. A ACL dos bons tempos parecia que estava de volta.
Acompanhando depois este percurso, foi ficando perplexo com a resistência, muitas vezes reprovadamente descortês, com que o trabalho de aperfeiçoamento da ACL era recebido pelos defensores do AO90 e, paradoxalmente, pelo não afrontamento intransigente, pelo contrário, do numeroso e respeitável movimento anti-Acordo. Ficava estranhamente a ideia de que quem era anti-Acordo parecia mais amigo da língua que quem era a favor.
Depois, foram sendo publicados diversos artigos no Pórtico da ACL sobre os melhoramentos em estudo
Finalmente, destacam-se e merecem-nos a maior atenção as suas últimas publicações (comentário em Resumo das recomendações da Academia das Ciências de Lisboa (ACL) para o AO90).
É também digna de nota a posição vinda a público, ultimamente tomada no Plenário da ACL:`a de não satisfazer ao aligeirado inquérito da Assembleia da República no seu maniqueísmo “sim ou não” ao AO90’; e `a de nem aceitar a alternativa da indiferença com a “abstenção”´. A ACL insistiu no propósito, expresso nos documentos já publicados, de continuar a propor melhoramentos ao AO90. O que, para o autor, se consubstanciará, pensa, na apresentação de um novo vocabulário para o AO90.
Este propósito, assim confirmado, é uma atitude de prudentes sages, no seu aconselhamento sobre a língua. Entre os dois extremos de intolerância atuais, o autor conclui que a ACL não desiste, generosa e corajosamente, de conseguir um meio-termo de sensatez.
Prudência e sensatez que ressaltam também naquilo que a ACL escreve na Introdução ao documento Sugestões para o Aperfeiçoamento: as indicações têm um «carácter meramente indicativo e facultativo». Ou seja, o autor interpreta que a ACL sabiamente aconselha, mas não obriga, não impõe...
Recomenda...; atendendo a todas as razões pertinentes na recolha exaustiva de dados que empreendeu; com aproveitamento do que é útil no AO90; mas, diferentemente do que se tem estado a fazer na sua aplicação: ...sem esquecer a história das palavras da nossa herança linguística.
D’ Silvas Filho
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