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Um contributo para a revisão do novo Acordo Ortográfico
terça-feira, 09 junho 2015

Um contributo para a revisão do novo Acordo Ortográfico

A aplicação do acordo assinado há 22 anos continua envolta em polémica. Sugestões de uniformização da ortografia.

O Acordo Ortográfico, assinado em 1990, não estabelece uma ortografia única e inequívoca, deixando várias possibilidades de interpretação em muitos casos, o que tem provocado alguma instabilidade ortográfica. As declarações do secretário de Estado da Cultura português, Francisco José Viegas, sobre a necessidade de aperfeiçoamento e de revisão do novo Acordo Ortográfico levaram-nos a elaborar este contributo, avançando algumas sugestões de uniformização da ortografia da língua portuguesa.

O Acordo Ortográfico apresenta muitas regras com exceções. Se, só por si, as mudanças ortográficas desencadeiam naturalmente reações de resistência, por vezes arrebatadas, os casos que fogem às regras gerais desanimam imenso quem escreve em português, pelo que se propõe uma redução das exceções.

Seguindo uma das novas disposições do Acordo Ortográfico, as locuções de qualquer tipo devem ser escritas sem hífen (Base XV, 6.º), salvo as exceções ditas consagradas pelo uso, como é o caso de água-de-colónia, arco-da-velha, cor-de-rosa, mais-que-perfeito, pé-de-meia, ao deus-dará, à queima-roupa. Como aferir o que está ou não consagrado pelo uso e como responder a algumas outras questões, nomeadamente: como explicar que pé-de-meia deve ser escrito com hífenes, em virtude da consagração pelo uso, mas pé de atleta não? Ou por que razão cor-de-rosa mantém os hífenes, mas o mesmo não acontece em arco da aliança, arco da chuva ou arco de Deus, quando todas estas locuções significam o mesmo? Não seria desejável que as palavras que apresentam o mesmo tipo de constituintes seguissem a mesma norma? O critério da consagração pelo uso, ainda mais num acordo assinado em 1990, não parece constituir um princípio rigoroso para justificar as exceções às regras gerais. Acrescente-se ainda que a dificuldade que a disponibilização de uma listagem de (todas as exceções) podia ter oferecido aquando da redação do texto oficial, hoje é facilmente superada pelos novos meios informáticos ao dispor dos lexicógrafos e uma listagem, ainda por publicar, poderia ser a solução para estes casos. Sendo este um ponto controverso da reforma ortográfica, os vocabulários oficializados até ao momento apresentam um diferente entendimento da matéria: a equipa brasileira conserva os hífenes nas exceções consagradas pelo uso referidas no Acordo, enquanto a equipa portuguesa opta pela facultatividade, assumindo também como aceitáveis variáveis sem hífen. Esta eliminação geral do hífen em locuções pode ser encarada como um fator vantajoso, no sentido de uma mais rápida assimilação e memorização da regra, pelo que se poderá propor a eliminação das exceções acima referidas (salvo em deus-dará, queima-roupa por serem estruturas obviamente diferentes das restantes). Uma outra possibilidade poderia ser seguir o critério semântico, mais ao gosto dos linguistas, mas não tão prático, dada a dificuldade muitas vezes sentida em avaliar o grau de transparência de estruturas: umas, em que o emprego do hífen pode ser justificado quando o sentido do conjunto se altera relativamente ao significado dos componentes (sentido figurado), como em pé-de-meia, e outras que dispensam o hífen, uma vez que a leitura é literal (sentido real), como em fim de semana ou sala de jantar. Ainda no quadro das exceções, podemos referir os compostos nos quais o primeiro elemento é uma forma verbal e em que a tradição gráfica dita o uso do hífen, como em conta-gotas ou guarda-chuva (Base XV, 1.º). Nalguns compostos deste género, os respetivos constituintes foram-se aglutinando ao longo do tempo: é o caso de, por exemplo, girassol, madressilva e pontapé. Segundo as novas normas, mandachuva, paraquedas e paraquedista também passaram a comportar-se desta forma, devendo ser escritos aglutinadamente. Contudo, o texto oficial não dita a eliminação do hífen noutros compostos com os antepositivos manda- e para- (a grafia nova não acentua pára), como manda-tudo, para-brisas, para-choques, para-raios, o que é incoerente com as grafias novas mandachuva, paraquedas, paraquedista, paraquedismo. Como explicar que guarda-chuva tem hífen e mandachuva não, quando ambas as formas são unidades compostas por um verbo e um nome? Surge a dúvida sobre se as palavras cujos constituintes são idênticos deverão também ser aglutinadas. Propõe-se repor o hífen em todos estes vocábulos (manda-chuva, para-quedas, para-quedista, para-quedismo), o que garantiria um tratamento uniformizado a todos os compostos como manda- e para-.

Relativamente a topónimos compostos, as novas regras determinam o uso do hífen quando iniciados pelos adjetivos grã, grão ou por forma verbal ou quando os seus elementos estão ligados por artigo, como em Grã-Bretanha, Abre-Campo, Trás-os-Montes. Nos outros casos, os topónimos compostos escrevem-se com os elementos separados, sem hífen, América do Sul, Cabo Verde, Castelo Branco, sendo Guiné-Bissau uma exceção consagrada pelo uso (Base XV, 2.º). Por que razão se mantém o hífen em Guiné-BissauGuiné Equatorial ou Timor Leste, por exemplo, são grafados sem hífen? Seria desejável a publicação de uma lista extensiva de topónimos em que se justifica a manutenção do hífen pela sua frequência ou consagração de uso.

Um dos pontos do Acordo Ortográfico referidos como mais problemático é o facto de um mesmo vocábulo apresentar mais de uma grafia correta (grafias duplas) e a proliferação da noção da facultatividade na ortografia. A facultatividade não é uma novidade na língua, mas este princípio vai contra o próprio conceito de unificação da ortografia. As grafias duplas são a representação gráfica de pronúncias diferentes, quer entre diferentes países, quer dentro do próprio território nacional. Não há dúvidas de que um português diz amnistia e tónico e um brasileiro anistia e tônico e que qualquer um dos dois irá grafar estas palavras de acordo com a sua pronúncia. Quando na Nota Explicativa se lê: «Os dicionários da língua portuguesa, que passarão a registar as duas formas em todos os casos de dupla grafia, esclarecerão, tanto quanto possível, sobre o alcance geográfico e social desta oscilação de pronúncia» deixa-se a resolução do problema para outros decisores, nomeadamente os lexicógrafos de Portugal e do Brasil. Ora, no Plano de Ação de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa lê-se o seguinte: «Nos pontos em que o Acordo admite grafias facultativas, é recomendável que a opção por uma delas, a ser feita pelos órgãos nacionais competentes, siga a tradição ortográfica vigente em cada Estado Membro, a qual deve ser reconhecida e considerada válida em todos os contextos de utilização da língua, em particular nos sistemas educativos.» Esta declaração do Conselho de Ministros da CPLP vem confirmar a existência de várias grafias nos diferentes países e atribuir essa responsabilidade às entidades oficiais.

A facultatividade também está presente nos casos de dupla acentuação em palavras esdrúxulas (Base XI, 3.º) e algumas graves, geralmente terminadas em n, r, s ou x com e e o tónicos, seguidos das consoantes nasais m ou n, com as quais não formam sílaba (Base IX, 2.º, Obs.), servindo de exemplo os vocábulos gémeo ou gêmeo, tónico ou tônico, ténis ou tênis, pónei ou pônei. Em Portugal e nos países africanos, escrevem-se com acento agudo porque o seu timbre é aberto, mas no Brasil escrevem-se com acento circunflexo porque o timbre é fechado. Como o timbre da vogal também é fechado em alguns casos na norma europeia, sente-se a necessidade de explicitar palavras como estômago, fêmea ou sêmola. Há ainda muitos outros vocábulos que apresentavam grafias diferentes nas duas normas oficiais assumidas até agora, como cupão ou cupom, edredão ou edredom, ião ou íon, mação ou maçom, protão ou próton, entre outros, e que seria útil estudar e tratar de maneira uniforme.

O critério norteador das novas normas ortográficas na demanda de um padrão ortográfico único é designado pelos redatores do Acordo Ortográfico como «critério fonético (ou da pronúncia)» na Nota Explicativa, 3.º. Este princípio fonético, muitas vezes criticado como um critério de fraco valor científico, pode simplificar a ortografia e reduzir o número de divergências entre as práticas ortográficas portuguesa e brasileira. No entanto, o mesmo princípio é sustentado pela «pronúncia culta» que, antes de ser difícil de definir, levanta outro tipo de problemas, uma vez que um mesmo vocábulo pode ser pronunciado de modo diferente, dependendo do contexto sociolinguístico, e não cabe à ortografia representar pronúncias regionais, socioletais ou individuais. Surgem imensas dificuldades no que concerne ao léxico técnico e científico por se tratar, na maioria dos casos, de palavras pouco correntes, cuja informação lexical (transcrição fonética ou ortoépia) é muito escassa, como, por exemplo, floctafenina, laparonefrectomia. Não se poderia manter a forma conservadora (com as consoantes etimológicas) como a grafia de uso universal, dado tratar-se de vocabulário pouco corrente e raramente usado pela maioria das pessoas? E que dizer dos casos em que este critério fonético gera formas gráficas diferentes das duas normas, quando anteriormente só havia uma grafia, como em recepção, agora receção na norma europeia e recepção na norma brasileira?

Há também mudanças que conduzem ao aumento de situações de homografia, palavras com grafias iguais, pronúncias iguais ou diferentes, mas significados diferentes, e que interferem com a velocidade do processamento da informação no ato de leitura. É o caso da eliminação do acento diferencial em paroxítonos que possuem uma homógrafa sem acentuação própria: para (anteriormente pára), flexão de parar, e para, preposição; pela (anteriormente péla), nome e flexão de pelar, e pela, combinação de per e la; pelo (anteriormente pêlo), flexão de pelar e pelo, nome ou combinação de per e lo; polo (anteriormente pólo), nome, e polo, combinação antiga e popular de por e lo (Base IX, 9.º). A eliminação do acento agudo na 3.ª pessoa do singular do verbo parar (para) cria um par homógrafo no português (homónimo do português do Brasil), dificultando o reconhecimento e a leitura. Esta opção acaba por se revelar inconsistente quando confrontada com a nova regra (Base VII, 3.º) em que se mantém a distinção entre pôr (verbo) e por (preposição), um par semelhante ao anterior, e também entre pôde (pretérito perfeito) e pode (presente).

O texto oficial estabelece ainda como opcional o acento em formas verbais como amámos, passámos (pretérito perfeito do indicativo), em dêmos (1.ª pessoa do plural do conjuntivo) e em fôrma (nome) – Base IX, 4.º e 6.º, b). Tendo em conta o exposto, propõe-se, em primeiro lugar, a reposição do acento diferencial em pára, péla, pêlo e pólo. Em segundo lugar, propõe-se uma nova redação que recomende explicitamente as formas do passado terminadas em -ámos na variedade europeia da língua, para as distinguir das diferentes formas não acentuadas do presente do indicativo, bem como a forma dêmos para se distinguir de demos, correspondente forma do pretérito perfeito do indicativo, e forma que enquanto nome será grafada sem acento na norma de variedade europeia e com acento circunflexo na norma brasileira.

No que diz respeito à hifenização, uma das novas regras estabelece o emprego do hífen nas palavras compostas que designam espécies botânicas e zoológicas (Base XV, 3.º). Este critério de uso obrigatório do hífen em compostos pertencentes à botânica e à zoologia, nomeadamente a espécies, poderia ser alargado a outras áreas de especialidade como a química, citando como exemplos os vocábulos azul-da-prússia, azul-de-cobalto ou azul-de-metileno, que se manteriam hifenizados por serem termos técnicos. Ainda dentro deste tópico vale a pena fazer referência a um aditamento da responsabilidade da Comissão de Lexicologia e Lexicografia da Academia Brasileira de Letras, seguido pela equipa portuguesa responsável pelo vocabulário oficializado, que esclarece o não emprego do hífen quando palavras que designam espécies botânicas e zoológicas têm outros sentidos que não os técnicos. Assim, há compostos que surgem desdobrados como, por exemplo, pé-de-galinha (planta) e pé de galinha (ruga).

Apesar de ser um critério coeso surgem algumas dúvidas: será que devemos hifenizar vocábulos como grão-de-bico? Enquanto espécie, não há dúvidas, mas enquanto semente leva hífen? E pinheiro-de-riga? Sendo uma espécie, tem hífenes. E a madeira designada de pinho-de-riga terá hífenes? Propomos que o hífen seja alargado, por isso, a todas as áreas de especialidade e, não apenas a espécies da botânica e da zoologia. Há outro problema que se pode levantar relativamente a este tipo de compostos. No caso de esse vocábulo ser uma designação popular de uma espécie botânica ou zoológica, o hífen será obrigatório, como em bicho-da-madeira? Não parece compreensível hifenizar as designações populares, pelo que as equipas dos vários países subscritores poderiam tentar chegar a um entendimento sobre estes casos. Apesar de o objetivo da reforma ser a unificação das duas ortografias oficiais da língua portuguesa, as instituições, e concretamente as equipas responsáveis pelos vocabulários oficiais têm vindo pontualmente, a tomar decisões que não são convergentes no que respeita às opções gráficas de diversas palavras e em que poderia ser útil acordarem uma uniformização.
No caso de locuções de uso geral, o vocabulário oficial em Portugal, além de aceitar variantes ortográficas para as exceções consagradas pelo uso, indicia que a nova norma apenas se aplica às sequências constituídas por um nome seguido por preposição e por um outro nome (por exemplo, dia a dia, fim de semana, sem hífen, mas azul-e-branco, leva-e-traz, com hífen). Refira-se ainda que o facto de este vocabulário apenas atestar as locuções registadas no Vocabulário da Língua Portuguesa de Rebelo Gonçalves é algo redutor, pois embora ainda seja uma grande obra de referência em língua portuguesa é um vocabulário datado de 1966 e que não regista, por isso, muitas outras estruturas usadas atual e correntemente como, por exemplo, sobe-e-desce e todo-o-terreno. É também o caso de expressões com valor de substantivo: será faz de conta, sem hífenes, ou faz-de-conta, com hífenes? Outras dúvidas surgem se nos referirmos às formas onomásticas que entram na composição de palavras do vocabulário comum: nestes casos, os nomes próprios grafam-se com inicial maiúscula ou minúscula? Será calcanhar de aquiles ou calcanhar de Aquiles, maçã de adão ou mação de Adão, tinta da china ou tinta da China? Por último, os compostos com elementos repetidos são hifenizados, segundo o critério ditado pela Comissão de Lexicologia e Lexicografia da Academia Brasileira de Letras, enquanto em Portugal se segue a tradição gráfica e este tipo de vocábulos se escreve como uma só palavra. Teremos, assim, tique-taque a par de tiquetaque ou zum-zum a par de zunzum. Uma vez mais, diferentes leituras do texto oficial fazem proliferar grafias duplas.

Uma ortografia simplificada tem sido a linha seguida desde a primeira grande reforma ortográfica portuguesa (1911) e é seguindo essa mesma linha que se pretende reduzir ao máximo as divergências entre as duas normas ortográficas existentes, garantindo assim uma maior uniformização de critérios, sem esquecer de descrever linguisticamente as variedades africanas, asiáticas e galega do português. É conveniente e vantajoso definir uma política linguística que seja um instrumento de conservação do vasto património que representa a língua portuguesa, reconhecendo a pluralidade e diversidade do nosso idioma. Devemos prosseguir na «demanda» de um sistema ortográfico que se adeque a todos os territórios em que se fala e escreve em português.

O tema não se esgota aqui e muito mais haveria a acrescentar. Este contributo deve ser encarado tão-somente como ponto de partida para uma reflexão conjunta de estudiosos e investigadores, numa perspetiva da lusofonia que o Acordo exige. Sirva o presente artigo para animar todos os interessados na elaboração de uma proposta de revisão que vise aperfeiçoar o novo Acordo Ortográfico e estabelecer novos critérios orientadores mais uniformes, quanto antes.

Artigo publicado em Revista Ler, junho de 2012, pp. 78-79; p.91

Comentários (1)

  • Vitor Madeira

    Vitor Madeira

    24 maio 2016 às 21:55 |
    Que documento precioso. Constato que data de 2012, pelo que se torna mais do que urgente seguir estas recomendações.
    A língua portuguesa necessita de continuar o seu caminho. Deixar as coisas ficarem como estão por muito mais tempo, só prejudica a língua que todos amamos.
    Simplificar a ortografia é imperativo, mas claro que sempre com base no princípio de não prejudicar a leitura.

    Obrigado.

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