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Não sejas ovelha ranhosa*, usa bem o português na tua prosa!
terça-feira, 07 julho 2015

Não sejas ovelha ranhosa*, usa bem o português na tua prosa!

Resumo da comunicação apresentada no TLI - Toastmasters Leadership Institute, Coimbra, 4 de julho de 2015, por Ana Salgado

Falar de bom português é sempre uma “seca” – pensam vocês! Emprego a palavra “seca”, forte marca de oralidade. Seria muito mais apropriado iniciar a minha apresentação da seguinte forma: Falar de bom português é sempre um assunto algo maçador – pensam vocês!

Ora, falar corretamente e expressar-se bem é um dever de todos nós. Por isso, vigiar o nosso discurso na hora de falar é essencial. Como é do conhecimento geral, o papel primordial de qualquer língua é estabelecer comunicação e esta tem de ser eficaz. Para garantir essa eficácia, fazemos uso de um padrão linguístico, a dita norma culta ou norma padrão. É o modelo instituído pela prática da língua das pessoas mais instruídas, cujas regras são explicitadas pela gramática, que é difundido pelos meios de comunicação social (ou, pelo menos, devia ser) e que deve ser ensinado nas escolas. A norma deve ser seguida por toda a sociedade e quem não a utilize pode mesmo correr o risco de ser excluído ou desprestigiado socialmente.

É meu objetivo que esta sessão não seja demasiado técnica e usar palavras simples para que todos me entendam. Recorro também a algumas personagens da série “A Corrida mais louca do Mundo” para vos apresentar o que pretendo. Teremos connosco o Pedro Perfeito, um cavalheiro que se gabava de ter o carro mais poderoso, hoje personificação de um certo cavalheirismo para com a nossa querida e estimada Língua Portuguesa. No entanto, tal como o carro do Pedro, também a nossa língua se quebra ao mínimo atropelo, chegando por vezes a ser destruída por completo, obrigando a uma reparação constante. Muttley, o cão bem famoso pela sua forma de rir, junto com o piloto Dick Detestável, são conhecidos por fazer todo o tipo de trapaças, mas sempre sem êxito. Os irmãos Rocha, que pilotavam o Pedramóbil, simbolizarão as marcas menos convencionais, ou seja, menos formais. O Professor Patente, cientista louco, traz algumas invenções à sessão. Por último, teremos a Penélope, que nos seduz, e que nos fará as honras de fecho da sessão.

Quando aceitei o convite para fazer este workshop, achei que seria importante partilhar convosco os erros mais frequentes, aqueles que fui detetando ao longo de várias sessões em clubes Toastmasters, onde desempenhei funções de grammarian. A meu ver, há sempre um cuidado maior com a escrita, nem sempre se enfatizando que o discurso oral deve ser igualmente cuidado e atento.

A língua altera-se por si só, dado que se encontra em constante renovação, mas também se altera porque alguém a altera e é aqui que surgem os ‘atropelos’ na nossa língua. Podemos falar da dicotomia ‘certo’ (é todo uso linguístico que segue as normas da língua-padrão) e ‘errado’ (é todo uso linguístico que não segue as normas impostas pela gramática). Não há consenso entre os sujeitos falantes e até mesmo entre gramáticos e linguistas, porque, por um lado, há os puristas e os conservadores da língua que não admitem qualquer mudança, por outro lado, há os que tudo admitem, com a crença de que o povo é quem manda na língua. Ao efetuar uma análise de desvios na língua, conclui-se que muitos deles, outrora condenados pelos puristas inflexíveis acabaram por ser aceites e legitimados. Uma elevada frequência de uso de uma determinada palavra pode provocar alterações na própria gramática, ainda que essa forma não seja entendida como a mais correta do ponto de vista vernáculo. A norma resulta do equilíbrio entre o bem falar e escrever registado como modelo e das práticas linguísticas adotadas pela comunidade de falantes.

Entregar um discurso?
A expressão correta é fazer um discurso.
A expressão “entregar um discurso” é um decalque do inglês “to deliver a speech” e o seu uso não é aconselhado. Em todas as línguas, há determinadas associações de palavras constituídas por um verbo em relação a um nome que apresentam um grau elevado de fixidez - as colocações. Este é o caso da construção “fazer um discurso” que substitui o verbo com o mesmo significado “discursar”, ou seja, o verbo “fazer”, no presente caso, funciona como verbo-suporte, uma vez que se esvazia lexicalmente e o seu significado é transferido para a expressão nominal que acompanha, formando um todo semântico. Sempre que o verbo “deliver” é acompanhado pelo nome “speech” é sinónimo de “make” (fazer), “pronounce” (pronunciar), e ao ser traduzido para português toma a forma de “fazer; pronunciar; proferir (discurso)”, não sendo sinónimo de “entregar”. Este último é um verbo que, normalmente, funciona como verbo pleno e, do ponto de vista das propriedades semânticas dos seus argumentos, o verbo "entregar" não é sequer compatível com o nome “discurso”, exceto no caso de se tratar de um discurso enquanto “texto escrito ou impresso”, nunca enquanto “mensagem oral”.

Houveram bons desempenhos?
A forma correta é houve bons desempenhos.
O verbo haver, no sentido de "existir", só se conjuga na 3.ª pessoa do singular. Neste caso, o verbo haver é considerado um verbo defetivo impessoal, porque não existe pessoa verbal, isto é, não há sujeito. No entanto, se o verbo haver for usado com o sentido de "ter", isto é, como auxiliar, conjuga-se em todas as pessoas, como em "Eles haviam dado a resposta correta".

Hades conseguir?
A frase correta seria: Hás-de conseguir.
Hás de é a segunda pessoa do singular do presente do indicativo do verbo haver com a preposição de. Neste caso, o verbo haver funciona como auxiliar e é conjugado em todas as pessoas, significando “ser obrigado a; pretender; desejar". Ora, Hades existe, mas é o nome de um deus grego, o deus do Inferno, do mundo inferior ou dos mortos.

Há anos atrás?
A expressão correta é: Há anos...
A expressão "há anos atrás" já incorpora o valor semântico de tempo passado decorrido, pelo que é redundante o uso do advérbio "atrás". É um pleonasmo, isto é, de uma ideia repetida.

Vou-te avaliar-te ou Vou avaliar-te?
As duas frases estão corretas.
Quando temos um verbo auxiliar conjugado (vou) e um verbo principal no infinitivo (avaliar), o pronome surge à direita do verbo auxiliar (vou-te) ou do verbo principal (avaliar-te). Há, contudo, gramáticos que apenas aconselham a colocação do pronome à direita do verbo principal (vou avaliar-te), mas as duas formas são legítimas.

Isso é uma perca de tempo?
A frase correta é: Isso é uma perda de tempo.
As palavras “perca” e “perda” costumam gerar muita confusão. Para não confundir as duas palavras em questão, devemos atentar ao significado de ambas.
Perca é uma forma verbal, ou seja, flexão do verbo “perder”. Aparece na 1.ª e 3.ª pessoas do singular do presente do conjuntivo e na 3ª pessoa do singular do imperativo.
Perda é um nome que significa privação (desapossar, excluir) de alguém ou de algo que se tinha. Na linguagem popular, perda e perca são sinónimos, mas deve evitar-se em linguagem formal.

A gente vamos treinar?
A frase correta é: A gente vai treinar.
A expressão "a gente" designa um conjunto de pessoas no qual o locutor se inclui: A gente vai treinar. O verbo deverá estar sempre no singular, em concordância com essa expressão, a qual é singular.

Diria-te para leres os manuais.
A frase correta é: Dir-te-ia para leres os manuais.
Emprega-se a mesóclise quando o verbo estiver no futuro do presente ou no condicional. Um exemplo clássico: diz-me com quem andas (ênclise) e dir-te-ei quem és (mesóclise).

O teu discurso foi de encontro aos teus objetivos.
A frase correta é: O teu discurso foi ao encontro dos teus objetivos.
A expressão de encontro a significa ir contra, embater. Ao dizer foi de encontro aos teus objetivos estamos a dizer o oposto daquilo que pretendemos.
A expressão ao encontro de acordo com, em concordância.

As novas equipas têm apoio massivo.
A frase mais correta seria: As novas equipas têm apoio maciço.
A maior parte dos gramáticos e linguistas condenam o uso do vocábulo “massivo”, alegando que o mesmo não existe em português, sendo o correto usar “maciço”. Na verdade, haveria necessidade de importar a palavra do inglês “massive” ou do francês “massif”, quando o português já possui "maciço", um vernáculo de sentido equivalente? Ora, a força do uso também consagra palavras e, nesse sentido, questiona-se se valerá a pena continuar a não aceitar o termo “massivo”, que vem apresentando uma elevada frequência de uso, já para não referir o seu uso generalizado nos meios de comunicação social.
O vernáculo “maciço”, adjetivo de origem castelhana que se relaciona com massa, com o ser compacto e denso, traduz os termos estrangeiros. Alguma confusão pode advir pela grafia em si. Vejamos: massivo, dois ss, por massa. No entanto, não há razão para tal porque, como sabemos, uma coisa é a grafia, outra o significado. Expressões como “população massiva” ou “armas de destruição massiva”, outrora condenáveis porque completamente desnecessárias, são hoje aceites na linguística atual. Se é um seguidor da tradição e bons costumes em língua portuguesa, diga e escreva “maciço”, no entanto, saibam que o uso de “massivo” já vem atestado como sinónimo do vernáculo em vários dicionários de português.

Já tinha ganho dois improvisos.
A frase correta é: Já tinha ganhado dois improvisos.
Ganhar é um verbo com dois particípios passados: um regular - ganhado - e outro irregular - ganho. O particípio regular é utilizado nos tempos compostos com os verbos auxiliares ter e haver. O particípio irregular é usado com os verbos auxiliares ser e estar.

O ênfase do discurso...
A forma correta de escrita da palavra é a ênfase, porque a palavra ênfase é um substantivo feminino. Dizer o ênfase está errado. Do gr. émphasis, 'ação de aparecer em, reflexo, imagem, compreensão, ação de fornecer um indício de algo, pelo latim emphàsis, 'força enunciativa usada para indicar a relevância lógica ou afetiva do que se diz', a palavra já era feminina.

A sessão tem a/que ver com o clube?
Estamos perante uma expressão muito usada pelos falantes portugueses e muito frequente na Comunicação Social, pelo que já ninguém a estranha! Esta expressão, de influência marcadamente francesa, encontra-se de tal forma generalizada que já vem sendo aceite por muitos gramáticos. Acontece que a expressão mais antiga, e considerada mais correta do ponto de vista linguístico, é ter que ver.

Estás com uma moral!
A frase correta é: Estás com um moral!
A moral é a ética – refere os princípios morais por que um indivíduo rege a sua conduta pessoal ou profissional. O moral é a disposição, o estado de espírito.

Marcas de oralidade: a evitar!
É muito comum o uso da palavra prontos quando devíamos utilizar pronto. Quando usado como adjetivo, pronto concorda em género e número com o nome que qualifica. É também utilizado frequentemente como bordão, ou seja, como uma palavra que se repete ao falar ou escrever. Neste caso, é sempre invariável e pode, dependendo do contexto, ser uma forma de passar de um assunto para a sua conclusão ou exprimir coisas diferentes, tais como emoção, alívio, desagrado, irritação, etc.
O vocativo  é usado em conversa informal, e é uma "forma utilizada (...) para indivíduos de ambos os sexos", apesar de derivar "de ra(pa)z".
As palavras coisa e cena têm mil e uma utilidades. É aquele tipo de muleta ao qual as pessoas recorrem sempre que nos faltam palavras para exprimir uma ideia. E tal coisa, e coisa e tal...
Brutal, um adjetivo do latim brutale-, que originalmente significa sem razão, irracional, próprio dos animais, selvagem, é um testemunho vivo de uma língua cheia de força. O vocábulo foi adquirindo novos sentidos e, atualmente, usa-se e abusa-se desta palavra. Com uma carga de expressividade enorme, brutal serve para referir algo que é excessivo, sendo ainda usado quando queremos dizer que algo impressiona, que é extraordinário ou fantástico.

Estes sentidos já estão atestados em vários dicionários, mas lembrem-se que, nestes contextos, o uso da palavra é informal ou coloquial, sendo de evitar em discursos mais formais.

Palavras de origem estrangeira: só em caso de necessidade!
É sempre preferível, quando necessário, recorrer à importação, procedendo ao seu afeiçoamento à língua portuguesa – e sabemos que são necessárias importações nalguns domínios, como o da tecnologia, por exemplo. Em muitos casos, porém, nem sequer há essa necessidade, pois para muitos deles é possível encontrar um satisfatório equivalente linguístico em vernáculo.
A língua portuguesa fica descaracterizada, sem identidade, se não somos prudentes no uso que fazemos da mesma.

Pedantismo discursivo?
Trago-vos ainda a questão do emprego generalizado do verbo "colocar" que tem substituído o verbo "pôr", este de espectro semântico mais amplo e parte de grande número de expressões da língua. Quase ninguém mais "põe em xeque", quase sempre se diz "coloca em xeque". Acontece que nem sempre o verbo "pôr" funciona como verbo pleno, ou seja, com seu significado específico ("colocar"); muitas vezes, funciona como verbo-suporte, constituindo com o seu complemento um conjunto semântico. É o que ocorre em locuções como "pôr em destaque", "pôr em prática", "pôr termo", "pôr em movimento" e "pôr em xeque", entre outras. Note-se que, nesses casos, a carga semântica do verbo oscila, isto é, depende do significado global da expressão. Nesses casos, é absolutamente desaconselhável o emprego do verbo "colocar", cujo significado é estrito, associado à ideia de local, posição. Convém lembrar que o verbo “colocar” vem do latim (“cum” + “locare”), o que lhe dá o sentido original de “pôr alguma coisa em seu lugar”, enquanto o verbo “pôr” funciona não apenas como verbo pleno, quando seu sentido é idêntico ao de “colocar”, mas também como verbo-suporte, situação em que constitui com o substantivo seguinte um todo semântico.
Outro verbo na moda é "rececionar", usado em vez do velho "receber". Mas atenção que não são sempre sinónimos perfeitos: pode ser acolher ou receber alguém, a nível institucional ou acusar a receção de um documento.

Ovelha ranhosa?
A expressão correta é ovelha ronhosa.
A expressão designa uma pessoa indesejável no seio de uma família ou de um grupo de pessoas. O adjetivo ronhoso formou-se a partir do nome ronha, que é uma doença que ataca alguns animais (uma espécie de sarna). Em sentido literal, uma ovelha ronhosa deve ser afastada do rebanho para não contaminar as demais e, em sentido figurado, refere uma pessoa indesejável num determinado grupo.
Ranhoso, aquele que tem ranho no nariz, designa em sentido figurado alguém com mau carácter ou que é desprezível.

Obrigada!
O vocábulo obrigado corresponde ao particípio passado de obrigar, um adjetivo que é definido como "que tem uma dívida de gratidão para com alguém”, podendo ser sinónimo de agradecido, grato ou reconhecido. Enquanto forma de agradecimento, a palavra obrigado deve concordar em género e número com o sujeito que agradece: obrigado, se se tratar de um sujeito masculino; obrigada, se se tratar de um sujeito feminino.

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Comentários (1)

  • Maria Bing

    Maria Bing

    18 julho 2015 às 00:42 |
    Muito obrigada! Um artigo fantástico. Gostei imenso.

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