quinta-feira, 08 setembro 2016
O pôr-de-sol e o simplificacionismo no hífen
Por D’ Silvas Filho
1. Locuções e compostos semânticos
Com as suas características analíticas, quando não encontra um vocábulo para traduzir exatamente um conceito, a língua usa o artifício de formar um conjunto de vocábulos para esse fim. As locuções são um exemplo. No seu significado, equivalem a uma palavra que tivesse o mesmo sentido. Às vezes são redundantes com palavras já existentes (de novo → novamente), outras vezes parecem redundantes, mas apresentam subtis diferenças, como, por exemplo em cima de, que parece ter a mesma acepção que a palavra sobre, sugere de facto mesmo contacto, enquanto sobre pode ser também por cima de.
Sendo equivalentes a uma só palavra, as locuções são sentidas como uma unidade típica no seu significado e, por isso, grafadas sem hífenes. Têm um sentido significativo objetivo como a palavra que representam ou representariam.
Ainda nesta qualidade analítica, a língua inventou mais um recurso: ampliar a comunicação com a junção de vocábulos que formem uma unidade semântica transcendendo o significado objetivo das palavras do conjunto. É um jogo do faz-de-conta. Quando se diz que «ele é um saco-roto, pois não se lhe pode dizer um segredo», nesse “jogo”: faz-se de conta que ele é como um saco que está roto para os segredos.
A gramática distingue, então, `o sentido objetivo´ das palavras e esse `sentido subjetivo com que ficam no faz-de-conta´, com as designações denotativo para o objetivo e conotativo para o subjetivo. Ora os nossos bons escritores e linguistas idóneos conceberam uma forma de mostrar quando se está no “jogo”, para que haja rigor na escrita. A grafia usada revela que o sentido é conotativo quando os vocábulos estão ligados por hífen, diferentemente do que se faz nas locuções. Por exemplo, o conjunto «nascer do Sol», equivalente à palavra “amanhecer” é uma locução mas um cavalo-de-batalha, argumento insistente, não é um cavalo de batalha, animal usado na guerra.
Há o critério de se dizer que as palavras com hífen ficam com um sentido aparente (parecem ter um sentido real mas têm outro). Ora, como o que nos interessa é o sentido diferente com que ficam e não o que perdem, neste trabalho vamos designar esse sentido conotativo (que sugere, implica), por “sentido imaginativo”. Distinguindo de locuções, designamos estas associações de palavras no sentido conotativo por compostos (Norma de 1945: «combinação de palavras em que o conjunto dos elementos, mantida a noção de composição, forma um sentido único ou uma aderência de sentidos»).
Independentemente desta utilização figurada, o hífen tem múltiplas outras aplicações, como se sabe:
- na ênclise e na tmese;
- na realização de ortografias de pronúncias exatas, por exemplo, ob-reptício, mal-escolhido (sem hífen haveria retorno inconveniente da grafia sobre a fonia, e esta questão é sempre fundamental nas regras ortográficas, esquecida no Projeto de 1986);
- na unidade de conceitos diferentes, por exemplo, tio-avô (uma aderência de sentidos);
- na caracterização de uma subtileza de diferenças, por exemplo, primeiro-ministro (primus inter pares);
- no respeito pela tradição, como em segunda-feira (semanas já sem feiras);
- na conversão de locuções em nomes, exemplos: o à-vontade dele, as boas-festas;
- nos gentílicos, como em norte-americano;
- no recurso à qualidade analítica da língua para, com palavras de acepções objetivas, gerar compostos objetivos traduzindo conceitos impressivos (de função: conta-gotas, de forma: cê-cedilha, de aspeto: azul-escuro, etc.).
Em resumo, a aplicação do hífen só é um segredo para quem ignora os seus efeitos e virtudes, concebidos no génio dos nossos ancestrais. Eliminar o hífen, na fobia de simplificar ao máximo a língua, é tirar-lhe virtualidades.
2. Simplificacionismo do hífen no Projeto de 1986 e no AO90
Ora, na ideia peregrina de simplificar a língua ao máximo para assim conseguir um hipotético máximo de unidade entre idiomas já bem diferenciados, os obreiros do imponderado (e desnecessário tão drástico) Projeto de 1986, liquidaram muitas virtudes do hífen (as palavras ou aglutinavam sempre, e apareciam, entre muitos outros, os retornos que surpreendem de tão inconvenientes: bemaventurança, panelénico, ou ficavam sem hífen os «compostos aparentes», e lá vinham sem hífen guarda noturno, médico cirurgião, água de colónia, este também com inicial minúscula..., cor de rosa, primeiro ministro, mais que perfeito).
Taxativamente, na senha contra o hífen, prescreviam também que todos os “compostos” ligados por preposição passavam a não o ter.
No AO90, Base XV, desistiram dessa supressão drástica e sempre aceitaram o hífen em compostos (os exemplos das múltiplas aplicações do hífen acima indicadas (de ob-reptício a azul-escuro) continuam a ser aceites no AO90.
Só que, continuando alguns dos colaboradores no Projeto de 1986 ainda no grupo de estudo para o AO90, o critério de suprimir o hífen nos compostos ligados por preposição foi transportado do Projeto de 1986 para o AO90. Então, para o justificar apresentaram um critério diferente do adotado na Norma ortográfica em vigor.
A Norma de 1945 (sob a égide do reputado Rebelo Gonçalves) distinguia claramente e em separado (Base XXVIII), os compostos das locuções. A Norma estabelecia, mesmo, nas locuções (alínea b) como exemplo de distinção, que cor-de-rosa não é uma locução.
Mas os autores do AO90 impuseram para o AO90 o princípio novo de considerar que os compostos no sentido aparente, desde que ligados por preposição passavam todos a ser também locuções... Justificaram, assim, a ideia de suprimir neles também os hífenes, como tradicionalmente acontece nas locuções. Nem se deram ao cuidado de notar que o conjunto de “locuções” especiais que se viram obrigados a aceitar no 6.º da Base XV está todo no sentido conotativo: água-de-colónia, arco-da-velha, cor-de-rosa, mais-que-perfeito, pé-de-meia, ao deus-dará, à queima-roupa.
Contrariamente, por exemplo, aos casos indicados em a) e b), no sentido denotativo: cão de guarda, fim de semana, sala de jantar, cor de açafrão, cor de café com leite.
Esses, sim, locuções, como já o eram alguns deles como exemplos, na Norma de 1945 (fim da Base XXVIII) e que estão no sentido real.
3. Aplicação geral da regra do Projeto de 1986, recusado
Embora no AO90 não esteja escrito que nos “compostos” aparentes ligados por preposição seja proibido os hifenes, o erro de os confundir com as locuções e a desculpa inválida de reservar estes hífenes só para as espécies (já não haverá reservas se não há preposição...), levou a que os obreiros dos apressados vocabulários para o AO90 considerassem, abusivamente, que era uma lei «só nas exceções indicadas se admitirem os hífenes nesses compostos», como se a lista indicada fosse exclusiva, o que não está expresso no texto do AO90. Isto em discordância com o próprio texto do AO90 na Base XVIII, que tem com preposição e hífen: borda-d'água, estrela-d’alva, pau-d’alho, pau-d’óleo, etc.
4. Caso de pôr-do-sol
Não se deve aceitar a proibição dos hífenes nos compostos conotativos ligados por preposição, como aliás entidades idóneas estão fazendo, nomeadamente a Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
Assim, pôr-do-sol, como composto imaginativo, não é uma locução, e deve ter hífenes, pois, para ser uma locução, deveria escrever-se com maiúscula pôr do Sol (equivalente às palavras ocaso ou poente).
“Um pôr-do-sol”, melhor “um pôr-de-sol” não representa só o Sol a desaparecer no horizonte, mas um conjunto figurativo que tem em conta o eventual espetáculo no céu e a impressão significativa que deixa aquele términos.
Como resumo desta nota, se queremos continuar a ter a magia estilística que a língua nos oferece, não podemos submetê-la a simplificacionismos exagerados.
Setembro de 2016,
D’ Silvas Filho
Comentários (1)
Ana Salgado
Que pôr-do-sol é um composto (exigindo hífenes), com simbolismo, prova-o a designação dada a essa bebida (“como um pôr-do-sol”, uma diferença, talvez excecional, não sei, porque nunca a bebi).
Pôr-do-sol aplica-se à luminosidade avermelhada, às vezes de grande beleza nas nuvens, que se observa quando o Sol está a “desaparecer” e tem também o simbolismo de um términos que pode deixar saudades ou produzir angústia.
Já nascer do Sol não tem tido essa aplicação simbólica e aparece na língua meramente como uma locução, oposta à também simples locução o “desaparecer” ou o morrer do Sol”.
A língua é avessa ao raciocínio lógico, e, em contrapartida, oferece-nos muitas virtualidades, quando simplesmente a procuramos sentir, nos cambiantes enriquecidos no seu longo passado.
D'Silvas Filho