domingo, 31 janeiro 2016
Sobre dicionários
Por Ana Salgado
Quem nunca usou um dicionário? Os dicionários fazem parte da vida de cada um de nós, mas são poucos aqueles que, alguma vez, se terão questionado sobre quem faz estas obras ou como são elaborados, pois afinal os dicionários estão feitos e à venda. Digo isto porque observo a reação da maior parte das pessoas quando, sem saber o que sou ou que profissão tenho, respondo: "Faço dicionários!". Ora, os dicionários são feitos por lexicógrafos e a disciplina que se ocupa dos dicionários é a lexicografia.
Sendo a lexicografia a técnica de fazer um dicionário, o lexicógrafo é um especialista em lexicografia, um estudioso da língua.
Inicialmente publicados apenas em forma de livro, isto é, em suporte de papel, o avanço da tecnologia, e sobretudo, da informática, deu origem à produção de dicionários em suporte digital. Hoje, em muitos casos, basta um clique para acedermos ao significado de um determinado vocábulo.
Consultamos dicionários para descodificar vocábulos cujo significado desconhecemos ou em busca de sinónimos que nos permitam expressar com maior propriedade, para esclarecer dúvidas, como saber se uma determinada palavra existe (achando que se a mesma não figurar no dicionário é porque não foi integrada no léxico da língua) ou para ter a certeza de qual a sua forma correta de escrita. Encontramos, nos dicionários, muita informação de carácter linguístico, mas também informação de natureza diversa, como a enciclopédica ou outras orientações de uso.
A seleção das palavras que irão constituir a lista de entradas do dicionário é uma das primeiras e mais árduas tarefas dos lexicógrafos. Ainda que a obra possa cobrir um vasto número de palavras, um dicionário nunca irá registar todas as palavras de uma língua. Por essa razão, quando procuramos uma palavra e não a encontramos, isso não significa propriamente que não exista, mas tão-somente que o lexicógrafo não a selecionou no seu prévio trabalho de constituição daquilo a que tecnicamente se chama a macroestrutura de um dicionário. A macroestrutura é o conjunto dos elementos que constituem o dicionário (páginas iniciais, nomenclatura ou lista de entradas, anexos). Definida esta parte, o lexicógrafo prestará a sua atenção na microestrutura, isto é, definirá o conjunto de todas as informações, de natureza diversa, que estarão presentes no interior do verbete ou artigo do dicionário.
O trabalho de um lexicógrafo é de uma enorme responsabilidade, pois há um mito em torno destas obras que nos faz olhar para as mesmas como um suporte de verdade absoluta, uma espécie de bíblia. Errar é humano, mas este profissional vive segundo um outro preceito: corrigir e esclarecer é divino.
No registo de palavras na nomenclatura, é prática comum seguir-se o critério da frequência de uso, ou seja, se um dado vocábulo ocorre frequentemente será, à partida, inserido na lista de entradas. Um critério eficaz que se torna dúbio quando afinal o leitor procura, na maior parte dos casos, palavras raras, geralmente eruditas, cujo significado desconhece pela sua pouca frequência de uso.
De uma forma geral, os lexicógrafos esforçam-se por eliminar progressivamente o discurso preconceituoso e sexista que possa ainda estar presente nos dicionários. A lexicografia atual muito tem trabalhado sobre este ponto. Ciganos, judeus, homossexuais, por toda a parte há testemunhos de insurgimento sobre certos sentidos pejorativos ou depreciativos que alguns vocábulos apresentam. Em vocábulos suscetíveis de expressar preconceitos, o lexicógrafo tem de ter muito cuidado e não tecer qualquer juízo de valor. O lexicógrafo tem de ser neutro e imparcial e cada um desses sentidos deve ser atestado, se é muito usado, mas com uma marca que informe o leitor desse uso de sentido negativo.
A língua está em constante evolução e é fruto do desenvolvimento atual. O lexicógrafo descreve os diferentes significados e o dicionário deve representar um retrato objetivo do estado da língua, dando conta da forma de estar de uma sociedade perante a realidade. A sociedade evolui e a língua evolui com ela. O surgimento de novas realidades, novos conceitos e até apenas de novas perspetivas sobre a realidade é, por isso, um foco essencial para o olhar atento dos lexicógrafos.
A atualização de dicionários não é uma tarefa simples e deve ser levada com espírito crítico e rigoroso, exigindo um profundo conhecimento do funcionamento da língua.
A tarefa de um lexicógrafo pode ser demasiado árdua, mas como diria o grande Aurélio:
«Fazer dicionários é como caçar borboletas. As palavras voam, é preciso caçá-las no ar».
Esta é a minha aventura, esta é a minha paixão.
Ana Salgado
Gestora do Pórtico da Língua Portuguesa
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